Além da Crença: O Despertar de um Espiritismo Livre

Você conhece algum espírita que diz não acreditar mais em “pecado”, mas sente culpa ao experimentar o prazer? Que afirma compreender a reencarnação como um mecanismo educativo, mas reage ao sofrimento como se fosse punição? Que trocou o medo do inferno pelo medo do umbral, ou o julgamento de Deus pelo julgamento dos “espíritos superiores”?

Isso se chama crença da crença. Pesquisadores da psicologia cognitiva sugerem que existem crenças implícitas, que não passam pela racionalização. Isso explica por que alguém pode dizer “não acredito mais nisso”, mas continuar agindo como se ainda acreditasse. São as emoções que permanecem programadas pela crença anterior. A crença da crença ocorre quando você já não acredita racionalmente em algo, mas sua mente ou seu corpo emocional ainda operam como se acreditassem.

E como isso se manifesta no Espiritismo? Quais são as crenças anteriores que permanecem marcadas em nós e em nossa sociedade?

Certa vez, caminhando com um amigo, passamos em frente a uma igreja católica e percebi que ele fez o sinal da cruz três vezes. Nem ele, nem eu éramos católicos. Mas ali estava uma crença se manifestando. Pensei: o que aconteceria se ele não fizesse o sinal da cruz? Acredito que nem ele sabia, mas fez porque foi assim que aprendeu.

No Espiritismo, podemos perceber muitos comportamentos semelhantes. Ao chegar ao Brasil, no século XIX, o Espiritismo encontrou um povo fruto da miscigenação entre indígenas, negros e portugueses — cada grupo com suas crenças transmitidas por gerações. Os indígenas, com uma espiritualidade profundamente integrada à natureza. Os negros, com uma espiritualidade ligada aos ancestrais. E os portugueses, com um catolicismo romano fortemente baseado em devoções, rituais e obrigações morais. Toda essa cultura se interrelacionava e gerava um caldo de crenças no qual a tradição de maior hegemonia — o catolicismo — acabava por se sobrepor às demais.

Nesse contexto, o Espiritismo se misturou à racionalidade e ao cientificismo propostos por Allan Kardec. Pouco a pouco, foi tomando uma nova aparência. Transformado em religião, tornou-se mais um ingrediente nessa receita cultural já existente.

Se dividirmos o Espiritismo em sua parte teórica (O Livro dos Espíritos) e sua parte prática (O Livro dos Médiuns), percebemos a influência católica na primeira, e as influências indígena e africana na segunda — áreas naturalmente mais afins a cada uma dessas tradições.

Desse caldo cultural nasceu o Espiritismo brasileiro. Com o surgimento de médiuns que se tornariam famosos, houve um salto em sua divulgação. A autoproclamada Federação Espírita Brasileira (FEB) se beneficiou da visibilidade desses médiuns para se posicionar como órgão orientador da doutrina, ou, como costuma se autointitular, “casa máter”.

A FEB já surgiu impregnada por todos esses “sabores” e saberes agregados à Doutrina Espírita, e suas publicações inevitavelmente refletem essa influência. Assim, quando ouvimos as perguntas lá do início — sobre o espírita que acredita em pecado, sente culpa pelo prazer, teme o umbral ou se julga punido por vidas passadas — estamos diante de crenças que não pertencem originalmente ao Espiritismo. São heranças do catolicismo. Punição, obediência, um Deus juiz moral, dor como sinal de evolução, autoridade de “espíritos superiores” que não pode ser questionada, resistência em falar de prazer, dinheiro, liberdade, sexualidade — tudo ainda é pecado disfarçado de expiação.

O Espiritismo virou religião no Brasil não apenas por decisão institucional, mas porque o inconsciente coletivo católico já estava programado para transformar qualquer prática espiritual em religião emocional. “Evangelho no lar” virou missa doméstica. “Passe” virou ritual de purificação. “Doutrina” virou catecismo moral. “Mentores” assumiram o papel de autoridades absolutas.

Então, o que seria crer realmente no Espiritismo?

Crer no Espiritismo, segundo seus princípios originais, seria:

  • Buscar entender, em vez de apenas acreditar.
  • Agir por convicção moral, e não por medo ou culpa.
  • Aceitar a evolução como processo natural, sem julgar o outro com base em hierarquias espirituais.
  • Estar disposto a revisar crenças herdadas à luz da razão e da experiência.
  • Usar a liberdade de pensar como ferramenta de crescimento espiritual.

Hoje, há muitas pessoas em busca desse Espiritismo racional, desconstruído. Um retorno às origens, mas sem desconsiderar as mudanças da sociedade. Temos contribuições valiosas de espíritas que, partindo dos estudos racionais de Kardec, conseguiram dar um passo atrás para observar o todo. Perceberam a grandeza e o potencial que ainda existem no Espiritismo como campo de conhecimento.

Identificaram um Espiritismo livre de amarras. Que retorna às suas bases não para se manter nelas, mas para usá-las como plataforma de construção. Estes são os Espíritas Progressistas.

Espíritas livres pensadores, progressistas e adogmáticos estão assumindo o desafio de olhar para dentro, questionar as heranças culturais que se infiltraram na doutrina e reconstruir a prática espírita com base na razão, na ética e na liberdade de consciência. Estão desprogramando a culpa, o medo e a obediência cega — substituindo-os por responsabilidade, autonomia e compaixão.

Essas mudanças não são uma ruptura com Kardec, mas um retorno ao que ele propôs: uma doutrina que caminha junto com o progresso, que se adapta à luz da ciência e do pensamento crítico, que valoriza mais a razão do que o dogma. O Espiritismo progressista é a prova de que é possível superar a crença da crença — e viver, enfim, um Espiritismo consciente.