Espiritismo Progressista e Conservador: Quem Está Mais Próximo de Kardec?

A doutrina espírita, concebida como uma filosofia de base moral e científica, nasceu com um impulso progressista. Allan Kardec, seu fundador, não apenas propôs uma nova visão sobre a existência e a vida espiritual, como também defendeu ideias que, mesmo hoje, soam avançadas. Por isso, ao comparar duas correntes contemporâneas — o espiritismo progressista e o conservador — é preciso perguntar: qual delas está mais de acordo com os princípios deixados por Kardec?


Espiritismo progressista: fidelidade sem paralisia

O chamado espiritismo progressista se define como uma vertente que deseja resgatar o espírito original da doutrina, aquele que se abre ao novo, que questiona, que acolhe as transformações morais e sociais da humanidade, sem abandonar a base doutrinária contida nas obras fundamentais.

Mas atenção: retornar às origens não é sinal de puritanismo, saudosismo nem apego literal. Também não se trata de congelar a doutrina em Kardec, como se ele fosse um profeta acima do tempo. Ao contrário: é reconhecer que o que há de mais avançado e ousado no Espiritismo está justamente em sua proposta inicial.

Kardec não pediu que o Espiritismo parasse nele — pediu que seguisse com ele. Sua proposta era de uma filosofia experimental, aberta à crítica e ao desenvolvimento. A fidelidade que ele exige não é a de conservar cada frase que escreveu, mas sim a de preservar a atitude filosófica, racional, ética e progressiva da doutrina.

Por isso, o espiritismo progressista entende que desenvolver a doutrina hoje é, em si, um gesto de lealdade à proposta original de Kardec. Trata-se de continuar construindo, com base segura e princípios claros, mas com olhos atentos aos desafios do presente: desigualdade, violência, crise ambiental, direitos humanos, liberdade religiosa e ética social.

“Se a ciência demonstrar que estamos em erro num ponto, abandonemo-lo.”
(A Gênese, cap. I, item 55)

Este não é um pensamento conservador. É uma convocação à atualização contínua, ao diálogo com o mundo real, à fidelidade que caminha — e não que se ajoelha.


Espiritismo conservador: tradição ou apego?

espiritismo conservador tende a preservar formas e práticas que se sedimentaram ao longo do tempo, sobretudo no Brasil, muitas delas influenciadas por modelos religiosos tradicionais. Enfatiza a rigidez de estrutura nos centros espíritas, valoriza certas hierarquias internas e evita tratar de temas considerados “polêmicos”, como política, sexualidade, gênero ou meio ambiente.

Embora muitos conservadores se afirmem fiéis à obra de Kardec, sua atuação por vezes entra em choque com os valores éticos fundamentais da doutrina. Como aceitar, por exemplo, que espíritas defendam a pena de morte, discursos de ódio ou preconceito de qualquer natureza, se a doutrina prega a reencarnação como oportunidade contínua de redenção e progresso?

Ao recusar o debate com o presente, o espiritismo conservador corre o risco de transformar a filosofia espírita em um conjunto de rituais repetitivos, fórmulas fixas e posturas fechadas, contradizendo a liberdade de consciência que Kardec tanto defendeu.


Kardec era um progressista?

Sim. E não apenas por sua época — Kardec era progressista por princípio.

Ele rompeu com o dogma, aproximou espiritualidade de ciência, fundou uma filosofia que rejeita imposições externas e valoriza o uso da razão. Algumas evidências:

  1. Fundou o Espiritismo como campo de investigação aberta, não como religião tradicional. Não há dogmas, nem hierarquias clericais.
  2. Defendeu a laicidade e a educação popular. Foi pedagogo comprometido com o ensino de qualidade para todos, incluindo mulheres e pessoas pobres.
  3. Estimulou o pensamento livre. Afirmava que a fé verdadeira é a que pode encarar a razão em qualquer tempo.
  4. Rejeitou o imobilismo doutrinário. A doutrina espírita, segundo ele, só tem força se acompanhar o progresso da humanidade.

Portanto, ao mesmo tempo em que estabeleceu fundamentos sólidos, deixou claro que o Espiritismo deveria evoluir com o tempo — sem se perder, mas também sem se fossilizar.


Conclusão

Fica evidente que o espiritismo progressista é, na essência, o mais coerente com a proposta deixada por Allan Kardec. Não porque traz “novidades modernas”, mas porque mantém a fidelidade ativa a uma doutrina que nasceu para caminhar com a humanidade — e não à margem dela.

Já o espiritismo conservador, embora valorize tradições, corre o risco de se prender mais às formas do que ao espírito. Ao evitar debates atuais, torna-se menos capaz de iluminar os dilemas do nosso tempo — justamente o que o Espiritismo nasceu para fazer.

Kardec nos chamou para o raciocínio, o diálogo, a reforma íntima e o engajamento no mundo. Se quisermos segui-lo de verdade, devemos continuar seu projeto: fundado no passado, mas sempre voltado para o futuro.