Espírito em sociedade: a dimensão esquecida do Espiritismo brasileiro

No Movimento Espírita Brasileiro (MEB) repete-se com frequência que a “vida espiritual” é a verdadeira vida. Embora esse seja um conceito presente na Doutrina Espírita, quando mal compreendido transforma-se em armadilha.

A experiência de cada encarnação é de extrema importância para o Espírito e não pode ser reduzida a uma simples etapa transitória, limitada ao cumprimento de provas ou expiações. A vivência terrena é muito mais ampla do que isso.

O risco surge quando a noção de “verdadeira vida” leva à desvalorização da existência encarnada, como se fosse algo menor ou ilusório. Nessa perspectiva, ignora-se a riqueza do mundo social em que o espírito está inserido e se esquece de que a própria vida espiritual também se organiza em dimensões sociais. Como lembra Alexandre Júnior (Teoria Social Espírita), somos seres-humanos-espíritos-sociais. Não apenas corpo e espírito, mas sujeitos que vivem a complexidade das relações humanas. Desconsiderar essa dimensão é esvaziar o sentido mais profundo da encarnação.

A Gestalt oferece contribuições valiosas para refletir sobre esse ponto. O princípio de que “o todo é maior do que a soma das partes” aplicado ao ser humano indica que não podemos reduzi-lo à soma de corpo + alma. O espírito encarnado é uma totalidade atravessada por cultura, história, política, relações sociais e pelos múltiplos significados da vida. Quando o MEB ignora essa totalidade em nome de uma suposta isenção diante dos temas sociais, justificando que “a verdadeira vida não é essa”, reduz-se a complexidade da experiência humana a um conceito empobrecido.

Outro conceito fundamental da Gestalt é o de campo: o ser humano nunca existe isolado, mas sempre em interação com um meio, em um tecido de relações que o constitui. O espírito encarnado, portanto, não é apenas um indivíduo em prova ou expiação, mas alguém que se constrói e se transforma no campo social em que está inserido. Negar essa dimensão é negar a própria dinâmica da vida.

A armadilha da “vida verdadeira” é produzir, em contrapartida, a ideia de uma “vida falsa”. No entanto, vida é vida, esteja o espírito encarnado ou desencarnado. Quando o Espiritismo se fixa nesse reducionismo, passa a proclamar o progresso de tudo, menos de si mesmo. Preso a fórmulas do passado, disfarça o conformismo de resignação e oferece um consolo que, em vez de ampliar consciências, acaba por anestesiá-las. Surge então uma pseudo-resignação incapaz de dialogar com os desafios sociais e políticos concretos, confundindo-se facilmente com misticismo religioso e dogmatismo.

Deolindo Amorim já advertia: “o Espiritismo tem por fim precípuo a espiritualização do homem na sociedade”. Espiritualizar, aqui, não significa afastar o homem da vida social, mas possibilitar que, consciente de sua dimensão transcendente, ele atue de forma crítica, solidária e transformadora.

Privilegiar apenas a visão desencarnada, apartada da vida concreta, é negar ao espírito encarnado a própria dignidade. A vida presente deixa de ser espaço legítimo de aprendizado e transformação e se converte em mera espera por uma suposta existência superior. Nessa perspectiva, fecha-se também o diálogo com outros saberes – filosóficos, sociais, científicos – que poderiam enriquecer a compreensão espírita da vida. O desafio é justamente reabrir esse diálogo, resgatando um Espiritismo laico, progressista e profundamente humano, no qual a espiritualidade não anule a vida terrena, mas a ilumine em toda a sua complexidade. Um Espiritismo capaz de reconhecer que espírito e sociedade não se opõem: são faces indissociáveis de um mesmo campo de existência.