O que Kardec pensaria do Espiritismo brasileiro hoje?

Vivemos em uma era marcada pela abundância de informações, mas também pela desinformação e pelo dogmatismo. A facilidade com que opiniões são transformadas em verdades absolutas cria um terreno perigoso, onde o diálogo se perde e a sociedade corre o risco de se guiar mais pelo carisma e pela repetição do que pela razão e pela análise cuidadosa.

O Espiritismo, desde as suas origens com Allan Kardec, ofereceu um caminho para enfrentar esse problema. Kardec afirmava que “fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade”. Isso significa que a fé não deve ser cega, mas raciocinada, constantemente avaliada diante dos fatos e aberta à revisão. O método que estruturou a Doutrina Espírita é um exemplo disso: observar, comparar, analisar e só então concluir. O objetivo nunca foi erguer dogmas, mas construir uma filosofia moral que se apoia na razão e na experiência.

Entretanto, quando observamos o movimento espírita brasileiro, percebemos que muitas vezes nos afastamos desse espírito original. A fé raciocinada cede espaço para uma repetição acrítica de tradições, mensagens e livros mediúnicos. Obras literárias conhecidas, como as psicografias de Chico Xavier, são frequentemente tratadas como verdades incontestáveis, mesmo quando trazem informações que deveriam ser avaliadas com cuidado, à luz da razão e do controle universal dos ensinos. Assim, relatos individuais passam a ocupar um lugar de autoridade que Kardec jamais recomendou conceder.

Outro problema recorrente é a transformação de médiuns e oradores em figuras de autoridade quase infalíveis. Suas opiniões passam a ser aceitas como regra, sem o exame crítico que deveria caracterizar o pensamento espírita. Isso cria um ambiente onde a dúvida saudável é vista como irreverência, e o questionamento, como sinal de desrespeito. O resultado é que muitas casas espíritas se tornam espaços de repetição, em vez de oficinas de aprendizado e investigação.

Também chama atenção a postura de afastamento diante dos grandes dilemas sociais e políticos do país. Kardec compreendia o Espiritismo como uma filosofia com consequências morais e sociais profundas. No entanto, boa parte do movimento espírita brasileiro prefere se refugiar em mensagens de consolo, muitas vezes desvinculadas das questões concretas de justiça, desigualdade e ética pública. Com isso, o Espiritismo perde relevância no debate social e deixa de oferecer contribuições práticas para a construção de uma sociedade mais consciente.

Fortalecer a mente contra o dogmatismo, dentro ou fora do movimento espírita, exige coragem para rever convicções e humildade para aprender com os erros. Isso implica reconhecer que experiências pessoais são valiosas, mas limitadas; que a verdade não pode se apoiar apenas em sentimentos, mas precisa se submeter ao exame coletivo e racional; que o questionamento não destrói a fé, mas a purifica.

Resgatar o ideal de Kardec significa, portanto, cultivar comunidades espíritas abertas à crítica, livres de personalismos e comprometidas com a busca constante da verdade. Uma fé raciocinada não teme a dúvida, porque sabe que a dúvida é o caminho para o esclarecimento. Uma prática espírita lúcida não idolatra médiuns, mas valoriza o método. E um movimento espiritualmente maduro não se omite diante da realidade social, mas participa dela de forma ética e responsável.

Somente assim o Espiritismo poderá manter viva sua vocação original: ser não apenas um consolo, mas também uma escola de consciência, razão e transformação moral.