Quando o Espiritismo abandona o método de Kardec e abraça a crença cega, o mito substitui a razão.
O filme e o equívoco anunciado
O novo longa Emmanuel, dirigido por Wagner de Assis — o mesmo de Nosso Lar — promete atravessar dois mil anos de reencarnações do famoso mentor espiritual de Chico Xavier.
A história se baseia nos romances psicografados Há Dois Mil Anos, Cinquenta Anos Depois e Ave, Cristo!, onde Emmanuel narra supostas existências anteriores, incluindo a de um senador romano chamado Públio Lêntulus.
Tudo indica que o filme será uma obra de ficção inspirada, o que é absolutamente legítimo. O problema não está no cinema — está na forma como o público espírita foi acostumado a encarar essas narrativas.
O movimento espírita brasileiro falhou em explicar que essas obras são romances históricos, não relatos factuais.
Por décadas, preferiu o silêncio pedagógico à clareza doutrinária. O resultado é uma legião de leitores sinceros, mas convencidos de que estão lendo biografias espirituais comprovadas, e não alegorias morais.
O romance não é o problema — a falta de crítica é
Toda arte tem o direito de ser simbólica, mística, poética. O Espiritismo, porém, nasceu sob outra bandeira: a da razão investigativa.
Allan Kardec deixou claro em O Livro dos Médiuns que o espírita deve “submeter tudo ao controle da razão e da universalidade do ensino dos Espíritos”.
Essa frase deveria estar impressa na capa de cada livro mediúnico.
Mas não está.
Em vez disso, consolidou-se no imaginário popular a ideia de que se Chico Xavier psicografou, então é verdade.
O médium, que foi um homem dedicado e humilde, acabou transformado em uma espécie de “papa espírita” — algo que ele próprio teria repudiado.
Emmanuel, seu suposto mentor, virou autoridade incontestável, mesmo quando suas narrativas se chocam com a história conhecida.
A fé raciocinada deu lugar à fé delegada: não penso, porque confio no médium.
O silêncio das instituições
As grandes federações e editoras espíritas foram cúmplices desse equívoco.
Ao longo de décadas, mantiveram o discurso de que essas obras eram “verdadeiras”, ou simplesmente evitaram o debate.
O medo de parecer “menos espiritual” levou ao apagamento da crítica.
Com o tempo, o movimento criou uma geração de leitores que não distingue romance espiritual de documento histórico.
A consequência é trágica para a própria Doutrina Espírita: uma filosofia que se propunha científica e livre torna-se cada vez mais dogmática e literária, dependente de médiuns-celebridades e romances edificantes.
Enquanto isso, Kardec — o educador que defendia o exame racional — é reduzido a uma citação protocolar nas orelhas dos livros.
O caso Públio Lêntulus
As obras de Emmanuel afirmam que ele teria sido um senador romano chamado Públio Lêntulus Cornélio, contemporâneo de Jesus.
Acontece que esse personagem não existe em nenhum registro histórico confiável.
Nenhum documento romano menciona um senador com esse nome exercendo cargo na Judeia ou enviando embaixadas a Jerusalém.
A figura de “Públio Lêntulus” aparece apenas em falsos evangelhos e textos apócrifos medievais, considerados fraudes históricas.
Mesmo assim, o nome foi adotado por Chico Xavier e incorporado ao imaginário espírita como se fosse uma identidade comprovada.
A crença acrítica transformou uma ficção em dogma.
O problema não é o erro histórico em si — o problema é o abandono da dúvida.
Quando o movimento espírita deixa de distinguir o simbólico do factual, trai o método kardeciano e flerta com o fanatismo.
Um filme pode corrigir um século de confusão
O novo Emmanuel pode — se quiser — fazer o que o movimento espírita não fez:
Deixar claro que se trata de uma narrativa inspirada, simbólica, espiritual, mas não histórica.
Que Emmanuel, como personagem, é uma metáfora da transformação moral, e não uma biografia literal de um senador romano inexistente.
Fazer isso não é negar o Espiritismo.
É honrá-lo.
Porque o Espiritismo de Kardec nunca exigiu fé, apenas razão e coerência.
E a verdade mediúnica, se existir, não precisa ser blindada contra a crítica — ela sobrevive a ela.
Conclusão
O mito de Emmanuel poderia ser apenas um belo romance espiritual, mas foi transformado em dogma pela falta de coragem crítica do movimento espírita brasileiro.
Agora, o cinema tem a chance de resgatar o discernimento perdido.
Afinal, não há nada de errado em acreditar — desde que se saiba em que se está acreditando.
“Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade.”
— Allan Kardec, O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XIX.
