Espiritismo e justiça social: quem estudou Kardec entende

Ultimamente, muita gente tem dito por aí que falar em justiça social é “politizar o espiritismo”.
Que a doutrina não tem nada a ver com transformação social, que a gente devia se preocupar só com o “melhoramento interior”.
Mas olha… quem realmente estudou Kardec sabe que isso não é bem assim.

Basta abrir o capítulo “Sede Perfeitos”, lá d’O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Kardec descreve o homem de bem como aquele que cumpre a lei de justiça, de amor e de caridade, na sua maior pureza.
E o que ele diz sobre esse homem de bem?
Que ele toma a defesa do fraco contra o forte, e que sacrifica seus interesses à justiça.

Isso, pra mim, é o resumo do que a gente chama hoje de justiça social.
É olhar pro mundo e se perguntar: “o que eu posso fazer pra diminuir a dor do outro?”
É não se conformar com a desigualdade, nem virar o rosto diante do sofrimento coletivo.

Tem gente que acha que espiritismo é só fenômeno: ver espírito, ouvir batida, receber mensagem.
Mas o próprio Kardec diz que o verdadeiro espírita se reconhece pela sua transformação moral.
E transformação moral não é algo que a gente vive trancado dentro de casa, sentado meditando — é algo que se manifesta no mundo, nas relações, nas escolhas, nas atitudes.

Quando você age pra tornar a vida de alguém mais justa, mais digna, mais humana, isso é espiritismo em ação.
É o “ama ao próximo” do Evangelho, saindo do papel.

Kardec também fala sobre o dever moral — e ele explica de um jeito lindo: o dever começa “no ponto em que ameaçamos a felicidade ou a tranquilidade do nosso próximo”.
Então me diz: num país onde milhões vivem sem o básico, será que nossa tranquilidade está completa?
Será que a nossa consciência pode ficar em paz enquanto tanta gente sofre?

O espiritismo não veio pra nos fazer espectadores do mundo, mas trabalhadores do bem dentro dele.
A fé que Kardec propõe é ativa, é aquela que transforma.
Não é pra levantar bandeira partidária, mas pra levantar o outro.
Não é pra impor ideias, é pra inspirar ações de amor e justiça.

Se o homem de bem “encontra satisfação nos benefícios que espalha e nas lágrimas que enxuga”, então falar de justiça social é, sim, estudar Kardec — e, mais ainda, viver o que ele ensinou.


Nem tudo é “escolha do Espírito”: o equívoco de culpar o pobre

Uma das frases mais repetidas quando se fala em pobreza é:

“Ah, mas eles estão passando por isso porque escolheram antes de reencarnar.”

Sabe o problema dessa ideia?
É que ela transforma o ensinamento da reencarnação, que é libertador, num instrumento de culpa e indiferença.
E isso vai totalmente contra o que Kardec ensinou.

A reencarnação não é castigo.
Ninguém “escolhe sofrer” por prazer ou por punição.
As situações difíceis são oportunidades de crescimento, sim — mas isso não quer dizer que a sociedade deva cruzar os braços e assistir.

O próprio Evangelho Segundo o Espiritismo deixa isso claríssimo.
No mesmo capítulo, Sede Perfeitos, Kardec diz que o homem de bem “toma a defesa do fraco contra o forte”.
Ou seja: se eu vejo alguém oprimido, passando fome, sendo injustiçado, meu papel não é julgar o carma dele, é agir com amor e justiça.

Deus não precisa de advogados pra justificar o sofrimento alheio.
O que Ele espera de nós é solidariedade.

É claro que, do ponto de vista espiritual, cada um vive experiências de aprendizado.
Mas do ponto de vista humano — o da convivência, da responsabilidade coletiva — nós somos chamados a diminuir a dor.
É isso que significa viver a caridade “na sua maior pureza”.

Quando alguém diz que o pobre “escolheu nascer assim”, o que está realmente dizendo é: “não é problema meu”.
Mas o espiritismo é justamente o contrário disso.
Ele nos ensina que o problema do outro também é meu, porque somos todos irmãos, partes do mesmo plano divino.

Então, se o espiritismo fala de progresso, ele fala também de justiça social.
Porque não há evolução verdadeira enquanto houver fome, miséria e exclusão.
E o verdadeiro espírita é aquele que entende que fé sem ação é egoísmo disfarçado de espiritualidade.


Conclusão — O céu começa aqui

A reencarnação é uma das ideias mais bonitas que o espiritismo trouxe de volta ao mundo.
Mas ela não é pra nos deixar conformados — é pra nos tornar conscientes.
Se cada existência é uma oportunidade de aprendizado, isso quer dizer que hoje é a nossa vez de agir com mais amor, mais justiça e menos indiferença.

Não dá pra usar o “é o carma dele” como desculpa pra virar o rosto.
Porque, se eu vejo alguém sofrendo e não faço nada, talvez o carma esteja sendo meu.
A gente não veio pra medir o merecimento dos outros — veio pra estender a mão.

Kardec nunca separou fé de responsabilidade.
Quando ele fala no homem de bem, ele descreve alguém que vive a caridade como forma de justiça.
Alguém que, em vez de justificar o sofrimento, trabalha pra que ele diminua.
Esse é o verdadeiro sentido de “Sede perfeitos”: caminhar um passo além do egoísmo e enxergar o outro como parte de nós.

O espiritismo não veio pra tirar a gente do mundo, mas pra nos ensinar a transformar o mundo.
E transformar o mundo não é só um ideal distante — é um gesto diário, é tratar com dignidade quem está ao lado, é lutar por condições mais justas, é respeitar, acolher, cuidar.

Afinal, se Deus é amor, o céu não começa depois da morte — começa quando a gente aprende a amar de verdade.